terça-feira, 3 de novembro de 2015

Marco D'Almeida os meus filmes de aventuras em moçambique


Texto por lexandra Prado Coelho

Em Moçambique, no final dos anos 70, princípio dos 80 - "eu era puto, mesmo puto..." - Marco d"Almeida passava dias em frente à televisão. "O meu pai tinha um vídeo-clube que foi a minha desgraça". Havia, em particular, um Indiana Jones de que nunca se cansava. "Durante um mês via-o todos os dias de manhã, sabia as falas de cor".
Era o tempo dos grandes filmes de aventuras, dos Indiana Jones aos "Star Wars". Era o tempo em que Marco ainda acreditava que tudo aquilo era verdade. Até ao dia em que um actor que tinha morrido num filme aparecia vivo noutro. "Fui perguntar e explicaram-me que eram actores, que não morriam mesmo. Ficou-me a coisa. Actores? Acho que é isto que eu quero ser".
Acharam que ele era maluco, o que "faz parte da coisa". Mas, mesmo assim, estava decidido. Tinha nascido em Moçambique, em 1974, mas viera para Portugal com sete anos, quando a situação começou a ficar mais complicada. "Não me lembro bem, não são essas as minhas memórias, mas sei que aquilo chegou a uma situação limite, não havia nada já para comprar, mesmo que se tivesse dinheiro". A família resolveu vir para Portugal, ficou durante alguns anos, e quando as coisas melhoraram regressou a Moçambique. Marco ainda voltou com eles, estudou na África do Sul, mas aos 17 anos, com a cabeça cheia de filmes de aventuras e convicto de que "Moçambique não era o sítio ideal para começar" uma carreira de actor, resolveu vir sozinho para Portugal. "Não sabia se ia dar certo, mas não queria chegar a uma certa idade e arrepender-me de não ter tentado". Foi para a Escola de Teatro de Cascais - "li no Se7e que havia lá audições" - mais tarde teve uma bolsa para estudar em Londres, depois outra para Nova Iorque.
Quando começou, de cinema português não conhecia nada. Não se sentia identificado com o que via na televisão, mas ia vendo tudo, porque acredita que se aprende sempre alguma coisa. "Até ter algo de mais sólido em que acreditasse, sempre fui ávido de aprender". O que ia fazer depois, não sabia. Mas não estava preocupado. "Tinha sempre uma alternativa, que era seguir o sol. Onde houvesse Verão eu estava lá. Ia trabalhar em bares de praia, ganhava o meu, e ia seguindo o sol, de mochila às costas", diz, a rir.
Assim, sentado ao sol de Inverno num princípio de tarde numa esplanada de Lisboa, cabelo louro, olhos verdes, barba feita, sorriso solar, parece mais esse adolescente de 17 anos a sonhar ser actor, do que o alferes Gaio do filme de Leitão, soldado de poucas palavras a tentar ser fiel a si mesmo numa guerra com que não concorda. "É uma personagem feita de subtilezas, de escondidos, de não-ditos, de sentimentos que não podem vir ao de cima mas que têm que estar lá. Isso obrigou-me a focar-me imenso para não os deixar escapar".
Marco é diferente de Gaio. Menos contido, mais brincalhão. E as filmagens, quase sempre de noite e no espaço fechado do quartel, puxavam para aí. "Acontece-me haver dias em que estou noutra energia. E ali tínhamos uma energia muito positiva de grupo. Mas sentia que este alferes estava à parte, não dormia na caserna, não tinha aquela relação de camaradagem, de falar das mulheres, das armas, dos negros". Por isso, quando chegava "com o espírito de estar com toda a gente", tinha que se pôr à margem, afastar-se, "para sentir o que é estar fora".

nem deus nem a guerra. O alferes chegou-lhe - num guião ansiosamente aguardado mas que se ia atrasando - ainda pouco delineado. Num filme em que o capitão é um homem com um conflito, e outros são personagens mais cómicas, Gaio "era o menos definido à partida". A personagem foi surgindo de muitas conversas entre o actor e o realizador. "Os conflitos internos, subtis, da personagem, foram sendo trabalhados já nas filmagens. Uma das coisas em que fomos trabalhando foi o facto de ele ser ateu, o facto de não acreditar mas ter um padre como melhor amigo".
Marco aceitara o convite de Leitão (com quem trabalhara em "Até Amanhã Camaradas") quando ainda não existia guião nem personagens. "Quando ele me ligou, nem hesitei". Aceitou porque sabia que o realizador "dá um espaço e uma confiança aos actores, o que é uma coisa rara", e foi esse espaço que lhe permitiu ir construindo Gaio. Nos longos meses de espera pelo guião, quando se chegou a pôr a hipótese de fazer o papel de médico, tentou estudar algumas coisas e, sobretudo, leu as cartas escritas à mulher por António Lobo Antunes, que foi para Angola como médico durante a guerra colonial.
Leitão não lhe deu modelos. "Achei interessante não haver esses modelos de filmes de guerra americanos, com heróis. Ali era uma guerra perdida, num território desconhecido, longe de tudo. Este não é um filme de personagens heróicas". Gaio diz, quase no início, quando o capitão lhe pergunta se não concorda com a guerra, qualquer coisa como "até agora nunca falhei os meus deveres". Foi a essa frase que Marco se agarrou. "A ideia de que se é para fazer então ele faz o seu melhor".
À sua frente tem um capitão, um homem com o qual tem uma relação de conflito, que o manda "naquela primeira missão que não faz sentido nenhum e que aquele fulano decidiu porque acordou com os pés para ali", um homem com um espírito militar muito maior do que o dele, mas que é, ao mesmo tempo, "um turbilhão de sentimentos". E, perante esse capitão - que no fundo confia nele mais do que em qualquer outro - "há uma compreensão, mas não uma aceitação". "Não fui capaz de o trair. Isso tem a ver com os valores do alferes. Não concordo, mas cumpro".
Com esta personagem, que não acredita na guerra e que não acredita em Deus, Marco d"Almeida é, pela primeira vez, cabeça de cartaz num filme. Até agora fez mais televisão - está a fazer a novela Tempo de Viver na TVI ("com o trabalho na televisão tenho surpresas, numa semana sou bonzinho, na outra recebo os guiões e descubro "afinal fui eu que matei a não-sei-quantas") - e teatro, como actor e encenador.
Não sabe explicar o que o leva a escolher uma peça para encenar ou a aceitar uma personagem. Mas, depois de na escola "ser sempre o principezinho, o apaixonado pela princesa, ou o dramático, o revolucionário, e nunca o cómico, o palhacinho da turma", gosta de contrariar essas prateleiras em que se tende a colocar alguns actores. No fim, na decisão de aceitar ou não um papel "está sempre uma história, às vezes não precisa de ter palavras, é o que se quer contar, o que se quer dizer com aquilo". Para mergulhar de cabeça - como fez em "20,13" - precisa de acreditar na história. Desta vez havia tiros, armas, trincheiras, gritos no meio da noite, explosões, e conflitos, como há num grupo de homens fechados num quartel sob ataque.
Era uma guerra a fingir, com holofotes e microfones, e Moçambique recriado na base aérea de Alcochete. Mas Marco d"Almeida acreditou - com a mesma força com que acreditava, quando era "puto", nos filmes do Indiana Jones.

PÚBLICO – 22.12.2006

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